A aprovação, pela Câmara e pelo Senado, do Projeto Ficha Limpa deve ser comemorada, sem dúvida, mas há muito que fazer no campo da democracia brasileira. Uma retrospectiva ainda que superficial aos clássicos da trajetória política do país bastará para reconhecer que, se a ficha é limpa, o arquivo permanece sujo. De fato, algumas concepções de nossa história funcionam, simultaneamente, como chaves para entender o passado e como metáforas para ilustrar o presente.
Tomemos de início o tripé da economia: latifúndio, trabalho escravo e monocultivo de exportação (Caio Prado Junior e Celso Furtado). Seguindo os princípios utilizados desde os tempos da Colônia e do Império, ou dos chamados “ciclos econômicos”, a política econômica dos últimos governos segue dando primazia aos grandes empreendimentos, ao agronegócio, à empresa agrícola e agropecuária ou às grandes mineradoras. De escanteio e à míngua, ficam os pequenos produtores, a agricultura familiar e a economia solidária.
O tripé da economia alia-se ao trabalho escravo, degradante, infantil, domiciliar, camelô, feminino com remuneração inferior – em geral, formas já execradas pela história, mas ainda vigentes em muitos países como o Brasil. Alia-se também à exportação de produtos primários para os países centrais, o que faz o povo pagar os bens naturais a preços de mercado internacional. Essa tríplice base em que se assenta a economia brasileira, vale não só para a questão da terra, mas também para a área das comunicações, da telefonia, da exploração do subsolo, e assim por diante. As fatias mais lucrativas e disputadas do mercado, como é o caso das telecomunicações, são entregues a uma elite reduzida da população brasileira.
Do ponto de vista político, tropeçamos logo com o conceito de patrimonialismo, que se define como a apropriação privada da rex pública, ou da coisa pública, em termos não só de poder, mas também de prestígio e de influência. Os donos do poder (Raymundo Faoro) costumam gerenciar os negócios políticos como gerenciam a própria fazenda ou empresa. O patrimônio privado se mescla com o patrimônio público. Daí o círculo vicioso entre donos do poder e donos da riqueza. O domínio sobre um campo transfere-se ao domínio sobre o outro. Tanto é verdade que as obras públicas são vistas naturalmente, por parte da própria população, como benefícios de Fulano, de Sicrano ou de Beltrano. Não só, mas não seria difícil identificar quem são os tradicionais “donos” de estados como a Bahia, o Maranhão, o Amazonas, Alagoas, entre outros.
Na perspectiva sócio-cultural, Casa Grande & Senzala (Gilberto Freire) segue retratando nossa realidade atual. Mas poderíamos citar também Roberto da Mata, Sérgio Buarque de Holanda, Câmara Cascudo... A verdade é que a casa grande das classes dominantes dispõe de privilégios intocáveis, enquanto a senzala dos trabalhadores conta apenas com favores. O pior é que estes, em última instância, dependem do humor do chefe de plantão. Na história do Brasil, cada vez que os moradores da senzala tentaram transformar os favores em direitos adquiridos, a resposta foi o chicote, o exército e a polícia. Aqui as lutas indígenas, negras e populares teriam muitos exemplos para ilustrar essa trajetória de libertação e repressão ao mesmo tempo.
Evidente que a aprovação do Projeto Ficha Limpa, que agora só depende do selo do Presidente da República, representa um avanço contra uma série de entraves históricos e estruturais da democracia brasileira. Mas o arquivo dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário conserva ainda muita sujeira. Entre os três poderes da União, reina por vezes uma promiscuidade que desencadeia não poucos escândalos de corrupção e de uso indevido do poder público, bem como de uma influência suspeita junto aos apadrinhados.
Juntamente com a Lei 9840, esse projeto constitui um instrumento a mais na mão dos cidadãos. Mas não basta uma enxada para remover tanto entulho. Temos de prosseguir na luta contra a imunidade parlamentar, o foro privilegiado e outras benesses tanto distanciam os representantes do povo do cotidiano de seus eleitores. Como uma espécie rara de extraterrestres, prosseguem no Planalto Central sua órbita secreta, no que diz respeito às prioridades da nação. Na planície, os simples mortais continuam lutando e sonhando com o chão e o pão. Como estamos em ano de eleições majoritárias, certamente receberemos deles algumas visitas e, se der sorte, alguns “regalitos” como dizem “nuestros hermanos”.
Temos algo a comemorar, sim, mas há muito lixo a ser removido. Nos bastidores do cenário político, na calada da noite e à luz do dia, os parlamentares são muito mais representantes de seus interesses pessoais, familiares e de classe, do que representantes do povo. Daí a necessidade de avançar para formas de democracia direta e participativa, com novos mecanismos de controle por parte da população.
O texto é uma grande reflexão, Pe Alfredinho esse Português-Brasileiro é arretado!
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